” A visão é um processo de aprendizagem”

Luís Manuel Costa Dias Pereira tem uma longa carreira ( e vida) ligada à oftalmologia. ” A decisão de me dedicar quase de forma exclusiva à estrabologia prendeu-se com a sensação de desafio que senti, ainda na fase de formação, por constatar que era uma área em que poderia atuar profilaticamente, ainda na prevenção primária, o que considero ser um dos aspectos mais importantes da medicina”.

 

OftalPro: Qual tem sido o seu trajeto profissional? Como surgiu o interesse pelo estrabismo?

Luís Pereira: Após ter concluído o Ensino Secundário em Setúbal, de onde sou natural, ingressei na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde terminei a licenciatura em 1978. Realizei o Internato Geral nos Hospitais Civis de Lisboa e o Serviço Médico à Periferia na ARS Setúbal. Em 1983, ingressei no Hospital de Egas Moniz (H.E.M) para realizar o Internato da Especialidade de Oftalmologia. Obtive a Graduação em Assistente Hospitalar, a Titulação em Especialista pela Ordem dos Médicos, fui nomeado para o lugar de Assistente Hospitalar de Oftalmologia do Quadro de Pessoal Médico do Hospital de Egas Moniz e atingi o Grau de Consultor de Oftalmologia da Carreira Médica Hospitalar em 1996. Toda a carreira oftalmológica tem sido realizada no Hospital de Egas Moniz. A decisão de me dedicar quase de forma exclusiva à estrabologia prendeu-se com a sensação de desafio que senti, ainda na fase de formação, por constatar que era uma área em que poderia atuar profilaticamente, ainda na prevenção primária, o que considero ser um dos aspectos mais importantes de medicina (refiro-me concretamente à prevenção da ambliopia). As competências que fui adquirindo nesta área, devem-se em muito à experiência que me foi permitido partilhar junto de colegas que são e foram uma referência na estrabologia ao mais alto nível. Refiro-me ao Dr. Carlos Pereira  (Hospital Geral de Santo António- Porto) e ao Dr. Peter Fells e ao Dr. John Lee (Moorfields Eye Hospital – Londres). Assim, fiz uma integração preferencial, nas actividades da Secção de Estrabismo do H.E.M. em 2000 e pelo Departamento de Oftalmologia Pediátrica e Estrabismo do C.H.L.O (H.E.M) em 2011.

O primeiro contacto que estabeleci com a Alm-Oftalmolaser foi em 2006 ao iniciar como colaborador externo as minhas actividades cirúrgicas nas instalações do bloco operatório. Desde 2008 que alargei a minha actividade regular na ALM-Oftalmolaser  à consulta de estrabismo, onde realizo dois períodos semanais de consulta e um período de bloco operatório.

 

OF: O que é o estrabismo? Qual é a principal perigo?

LP: O olhar em frente para o infinito corresponde à Posição Primária do Olhar (PPO), que é o ponto de partida de qualquer exame na área do estrabismo. Nesta posição os olhos estão “alinhados”. Entende-se por estrabismo a ausência de paralelismo dos eixos oculares com a alteração da visão binocular, ou seja, há um desvio anormal de um dos olhos relativamente ao outro. Existem vários tipos de estrabismo; a sua classificação pode ser feita na base de vários fatores tais como a direção do desvio, o estado da visão binocular e o comportamento da fixação, entre outros.

Um aspecto muito importante é o da dominância ocular, porque , habitualmente, uma forte preferência na fixação de um dos olhos ( estrabismo unilateral) pode implicar uma reduzida acuidade visual no olho desviado. É uma chamada ambliopia. Em resposta ao que é particularmente grave no estrabismo,  poderei fazer de uma forma simples que os riscos no estrabismo são as anomalias  sensoriais: a ambliopia e a supressão na criança e a diplopia no adulto. A ambliopia é o deficit visual sem lesão orgânica  detetável no sistema ótico (é o olho preguiçoso que não melhora com óculos…!); a ambliopia estrábica é o tipo de ambliopia que devida à dissociação binocular, dá origem à dominância ocular ( é o olho preguiçoso que não melhora porque está distraído  a olhar para o outro lado…) – é no entanto uma situação clínica de bom prognóstico e reversível  quando deteta a tratada precocemente. No estrabismo paralítico, mais frequente no adulto, há uma alteração na função da parte do Sistema Nervoso Central responsável pela ação dos músculos extraoculares. No adulto, a diplopia ( duplicação da imagem…é o ver duplo…) é um sintoma particularmente  incomodativo; a criança está protegida desta queixa pela instalação da supressão.

 

OF: Quando e como pode ser feito o diagnóstico?

LP: Há que estar alerta desde o nascimento, direi mesmo, desde antes do nascimento. O estrabismo afeta frequentemente mais de um membro de uma família. Apesar do tipo de hereditariamente  não estar esclarecido, o que provavelmente é hereditário é a situação subjacente ao desvio, como por exemplo um erro refrativo ou uma fragilidade  na visão  binocular. O estrabismo pode ser detetado no recém- nascido, mas, como é difícil de documentar nesta idade, o termo congénito deve ser substituído por infantil em todas as formas com início durante os primeiros seis meses de vida.  Não há portanto uma idade só a partir da qual é possível realizar o diagnóstico.  A avaliação oftalmológica deverá  sempre ser efectuada de forma sistematizada e de acordo com  a idade da criança. Por vezes, o diagnóstico é muito fácil, quase intuitivo; outras vezes é difícil e exige uma avaliação oftalmológica geral e cuidadosa com recurso a exames complementares de diagnóstico e é sempre um trabalho em equipa, quer na área da oftalmologia geral quer na área das alterações oculomotoras.  Na ALM- Oftalmolaser encontro uma diversidade de subespecialidades, como por exemplo a neuroftalmolgia e a retina médica, entre outras, que permitem uma avaliação complementar, se necessária a completa, dos pacientes com estrabismo.

 

OF: Qual é o tratamento?

LP: O tratamento médico das alterações oculomotoras, na criança e também no adulto, deve evitar o desenvolvimento de anomalias sensoriais (ambliopia, supressão e diplopia, entre outras). Quando já instaladas, deverá procurar-se a sua recuperação e tentar, ao mesmo tempo, fazer desaparecer o desvio. O plano terapêutico pode incluir:

  1. Tratamento oftalmológico (p/ex: cirurgia das cataratas congénitas e ptose)
  2. Tratamento oclusivo ( p/ex: terapêutica com oclusão- penso ocular)
  3. Tratamento ótico (p/ex: prescrição e uso de óculos de correcção)
  4. Tratamento da visão binocular (p/ex: prescrição se uso de prismas e tratamentos de ortóptica).

Por vezes, é necessário recorrer ao tratamento cirúrgico  para corrigir o desequilíbrio oculomotor ( realinhar os eixos visuais…). Há que realizar um exame pré-operatório que inclui a realização de exames complementares. As técnicas de microcirurgia, variadas e adaptadas a cada caso clínico, associando o uso de materiais de sutura atraumático, permitem um pós- operatório habitualmente sem complicações significativas e com bons resultados. A  cirurgia é realizada sob anestesia geral e o tempo de permanência  na clínica é mínimo, quer nas cirurgias clássicas quer nas situações em que recorro ao uso da toxina botulínica ( Botox). Na ALM-Oftalmolaser  disponho de instalações ímpares para a realização de qualquer tipo de cirurgia de correcção de estrabismo, quer pela equipa ( anestesiologia e enfermagem) experiente na cirurgia em idade pediátrica, quer pelas condições técnicas do bloco operatório (microscópio e recobro) para as cirurgias com a técnica de sutura ajustável.

As cirurgias são realizadas em regime ambulatório. Aina relacionado com o tratamento, há dois aspectos que gosto de sublinhar: o primeiro tem q ver com a necessidade de envolver e coordenar no tratamento todos os profissionais  de diferentes áreas médicas, professores e familiares ou pessoas significativas ( caso dos doentes institucionalizados ou dependentes)… desta forma, o tratamento é definitivamente um trabalho em equipa.

A ALM-Oftalmolaser possui um grupo de optometristas com elevada experiência e com todos os meios, quer de diagnóstico quer terapêutica, completando assim de uma forma holística o tratamento do estrabismo e todas as perturbações da visão binocular. Mas, acima de tudo, chamo mais uma vez a atenção: é sempre mais fácil evitar o desenvolvimento das alterações sensoriais do que a sua recuperação e, por isso, damos tanta importância ao diagnóstico precoce que permite estabelecer o tratamento profilático das mesmas.

 

OF: Quais as alterações psicológicas que podem estar presentes no estrabismo? E como preveni-las?

LP: Do ponto de vista estético, o estrabismo é mal aceite pela maior parte das sociedades. Ter um aspeto diferente dos outros leva muitas vezes à troça e hostilização. O mesmo acontece no relacionamento interpessoal. Tem um impacte negativo na autoestima. O desenvolvimento da personalidade das crianças pode ser afetado por este problema. Também a relação pais-filhos pode ser afectada por problemas psicológicos aumentado a ansiedade dos pais. Daí que estas alterações , como já sugeri anteriormente, podem ser minimizadas pela participação em decisões que dizem respeito ao tratamento médico-cirúrgico do problema que afeta os filhos. Como é do conhecimento geral, a prevenção, como tudo, deve começar antes do nascimento. Por isso, a gravidez deve ser planeada e os cuidados gerais de saúde devem iniciar-se entes de engravidar. A mulher grávida deve antes de mais ter os cuidados gerais compatíveis com uma vida saudável. Estes incluem uma dieta cuidada, um bom equilibrio entre o exercício fisico adequado e o repouso e abstinência de fumo, álcool e outras drogas. Devemos ter presente que a visão é um processo de aprendizagem. Na espécie humana a visão não se encontra completamente desenvolvida ao nascer. A acuidade visual é nessa altura muito baixa (equivalente a 1/10), mas aumenta rapidamente nas primeiras semanas de vida. Os primeiros três meses de vida são particularmente importantes para o estabelecimento da fixação e desenvolvimento da acuidade visual da criança. A capacidade de perseguição de um estimulo visual é igualmente importante, relacionando-se com a fixação, a acuidade visual, a motilidade ocular. e o desenvolvimento do campo visual. Aos quatro anos, é de esperar uma acuidade visual de cerca de 7/10 e de 10/10 aos cinco anos. Qualquer anomalia  que interfira com este processo de aprendizagem, com este adquirir de competências, terá necessariamente consequências a longo prazo. O exame oftalmológico da criança não está confinado à avaliação da função visual… Como existem dois olhos, nunca esquecer que um pode ver mal sem ser notado e o estrabismo é um dos responsáveis por esta situação grave. Conceitos práticos: a melhor forma de identificar a doença ocular/visual e de prevenir a cegueira é através da deteção precoce/diagnóstico precoce:

a) Todos devem ser observados por oftalmologia de forma sistemática, de acordo com a idade.

b) Todos devem ser observados por oftalmologia de forma periódica, conforme a doença existente.

c) Todos devem submeter-se a rastreios para as doenças que podem levar à cegueira.

 

OF: Como vê o futuro na abordagem ao estrabismo?

LP: Em termos gerais, acompanhando e adaptando à nossa realidade a iniciativa Visão 2020, que tem por meta dar a todos o direito à visão. é importante, como disse anteriormente, a prevenção e o diagnóstico serem precoces. Para isso, temos de participar em todas as actividades que nos aproximem dos doentes, quer saindo do “consultório” clássico para a realização de rastreios,  quer facilitando o acesso ao mesmo por uma maior ligação a outras áreas médicas, nomeadamente aos médicos de familia – alargar o “atendimento” ao maior número possível de utente. é também prioritário ser cada vez mais solidário e não procurar sempre as contrapartidas clássicas. Estes aspectos encontro-os na ALM -Oftalmolaser que, com a sua postura, assume responsabilidades de solidariedade social em apoio a grupos de frágeis recursos. É fundamental também a actualização médica contínua e o procurar atingir níveis mais elevados de conhecimento científico. A isto se junta saber ser razoável em termos de eficácia e eficiência, poupando recursos tão importantes e que podem ser canalizados para outras áreas de atendimento. Aqui também, a ALM -Oftalmolaser está na linha da frente no apoio e incentivo na aquisição de conhecimentos e boas práticas clínicas de todos os profissionais de saúde que com ela colaboram, quer com actualizações on the job, quer na promoção dos mais diversos tipos de reuniões científicas.

 

Distinguir estrabismo e paralisia oculomotora

A perturbação oculomotora tem na sua origem a paralisia de vários músculos extraoculares e, por isso, tem de ser claramente distinguida das formas concomitantes de estrabismo. A principal razão desta distinção deve-se ao facto de uma paralisia poder vir a afetar a saúde geral do doente que sofre desta mesma perturbação, sendo sinal de um quadro clínico complicado. São os seguintes os critérios de distinção dentre o estrabismo e a paralisia oculomotora:

 

Estrabismo Paralesia
Diplopia (visão dupla) Não Sim
Desvio Ocular Igual em todas as direcções do olhar Limitado em determinada direcção do olhar
Movimentos oculares Normais em todas as direcções do olhar Limitado em determinada direcção do olhar
Desvio consoante o olho fixador Desvio sempre igual, independente do olho fixador Desvio diferente, variando com o olho fixador
Torcicolo Não Sim

 

                 

Como se processa a visão 

Apesar de pensarmos que é com os olhos que vemos, o processo de visão é bem mais complicado do que possamos imaginar. As células foto-receptoras da retina absorvem o espectro electromagnético que constitui a luz e há depois uma transmissão destas informações para o córtex cerebral que surge a percepção final do processo: a visão. Pode então dizer-se que na realidade não vemos com os olhos mas sim com o córtex (cérebro). Apesar do córtex visual receber dois estímulos, uma imagem de cada olho, a percepção final é unica (uma só imagem). Este fenómeno de interligação das duas imagens numa única denomina-se fusão (visão binocular).

Imagem da notícia: Luís Pereira em entrevista